Cyn McCurry - Self Portrait - Healing |
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Não há no mundo recipiente de suficiente tamanho para acolher minha angústia, nem mesmo a complexidade dos seres mais perturbados seria capaz de suportar a dor e a mágoa que carrego em mim, amplificada ainda pela submissão, e só isso já seria material para mais outro tanto de melancolias, tentar entender por que agüentei tudo isto por tantos anos, por que deixei que isto ficasse suspenso, pairando sobre o fluido inexorável do tempo, como deixei que este ponto falso se enrolasse pelo meu corpo, me entranhando, me mumificando, sem que eu ousasse ao menos erguer a face, olhar nos olhos, emitir um simples por quê, mesmo que tímido e respeitoso, nem ao menos me defender eu tinha coragem, pois poderia despertar ainda mais a fúria que em mim ele deitava, e só sabia mesmo era esperar, ansiosa e temerosa, que ele chegasse em casa, não importava mais a hora, só importava o seu humor, que se chegasse bem humorado sabia que necessitaria de sexo, muito sexo e um mínimo de carinho, e lá estaria eu para satisfazer sua fome animalaça, mesmo sem vontade, afinal isto não importava a ele, mas se chegasse de mau humor, só me restava baixar a cabeça, me ajoelhar e asilar sua justiça, ímpeto de cólera, ele surdo dos meus sentimentos, eu cega de alguma vida, cega de mim, cega de ser, cega de qualquer possibilidade que arrematasse essa minha impossibilidade, ele sempre agindo e se impondo descomportadamente, vivendo, nunca eu, me contendo, reprimindo e guardando, mas toda cegueira um dia conhece a luz, nem que seja a luz divina e divisória deste mundo para o outro, que nos impele para fora de todas as prisões materiais e emocionais que tanto prezávamos, ou melhor ainda, como foi, uma luz desse mundo mesmo, que me tirou da cegueira imaginária em que me encontrava, abriu os pesados portões da masmorra do meu ser entrezado, adubou minha terra batida com sua seiva, regou minhas sementes com seu suor, e fez meu corpo se mostrar sem medo, fez-me fluir outros líquidos que jamais pensei produzir, fez-me sentir o cheiro do ar, a umidade da chuva, o calor do sol, e pude sentir que respirar é possível, que há vida aqui mesmo em mim, que sou alguém que pode ter vontades, desejos e caprichos, e que tudo isto pode ser saciado, que sou capaz de sentir, em forma de saudades, o querer estar junto de alguém que não me exige, não me conduz, apenas me é, e senti, pela primeira vez, um prazer imenso em me dar, dar-me em corpo, alma, suores, secreções, sangues, alegrias, tristezas, agonias, realizações e tudo que antes não me existia, longe das correntes que me prendiam às paredes lodosas dos meus vínculos, longe das culpas que me impunham flagelos, longe das imperfeições que tenho, mas não é isto que importa a essa luz, tão intensa e poderosa em seu brilho que todas as minhas possíveis obscuridades, minhas mais terríveis trevas ela é capaz de iluminar e clarear, torná-las transparentes ao ponto de se copularem às minhas dissimuladas qualidades, cada imperfeição que eu possa ter se transforma em duas, três, quatro virtudes, de forma tão pura e veemente que só posso sentir medo… um medo diferente, é certo, medo de não ser reflexiva o bastante para esse brilho, de não ser capaz de reciprocar sua luz, um receio de coisa tão boa que pode não ser verdade, um sonho que de súbito se acabe e me jogue no meio do mesmo caldeirão, no mesmo inferno, queimando no mesmo fogo das minhas paixões recolhidas, e a mesma besta a mexer o caldo do meu destino, com o tridente de seu verbo peçonhento, regulando o fogo de acordo com a temperatura de seu destempero, mas logo aposto no improvável, que mesmo a impossibilidade desse meu viver pleno é infinitamente mais compensadora que meu arrastar insano, minhas horas, meus dias dementes, numa vida que agora consigo figurar, e é por isso que esse sonho me move, me alimenta com uma força singular, excêntrica e estranha, me conduz por suas veredas claras e amáveis, permitindo uma vida que nunca poderia imaginar real, abrindo minha cela, escancarando as portas do meu ser, me deixando livre para fazer o que bem eu entender dessa vida que ainda me resta, com uma força renovadora, um respeito e um amor próprio que há muito não sentia, uma coragem para erguer a cabeça num solavanco e exigir dignidade, acatamento, que se não conquistado, hei de erigir minha existência em invocação ao que me é de aprumo; e é tal meu arbítrio, que posso até mesmo continuar exatamente onde estou…
Que venha a tempestade…