Laura

Edvard Munch - Death of Marat I, 1907
Oil on canvas
Laura aperta o passo. Ela não gosta de ouvir outros passos tão próximos aos seus. A esquina está perto, a pouco mais de vinte metros, e a outra rua é consideravelmente mais movimentada do que este beco. Também, que idéia passar por um lugar desses pensou Laura.

Os passos também se apressaram. Ela se adiantou ainda mais num pequeno trote, chegando quase a correr pela rua do seminário. Laura sabia que tudo não passava de pura coincidência. Ela rezava para que tudo não passasse de uma estranha coincidência.

A esquina está a pouco menos de dez metros agora. Laura está em frente a um prédio imponente que tem como fachada pardas pedras de granito e letras enormes num painel de néon que formam os dizeres hotel paissandú. Ela não tem coragem de olhar para trás com receio do que possa ver. Cinco metros para a esquina, quatro, três, dois, um... pessoas andando em várias direções pela praça do correio. Laura, ofegante, olha para trás e nada vê.

Gabriel, certa vez, desenvolvera uma teoria sobre as pessoas do centro da cidade. Segundo ele, as pessoas que andavam pelas ruas e calçadões do centro durante o dia, não eram as mesmas que por lá andavam durante a noite. Nada tão óbvio assim. Gabriel defendia a idéia de que as pessoas da noite, como ele as chamava, viviam reclusas, em becos e buracos abandonados, esperando, pacientes, que o dia se fosse para dar lugar às horas noturnas, às horas a eles permitidas. Era aí que essas pessoas se mostravam, diferentes, estranhas, loucas, lunáticas, dando a impressão que não pertenciam a este mundo, e pacífica porém autoritariamente, tomavam conta das ruas e calçadões do centro da cidade. Aos poucos passavam a ser a maioria e logo, os únicos. Se algum intruso, algumas das pessoas do dia — e elas eram imediatamente reconhecidas, senão pelo olhar, pelo jeito de andar — se algum intruso ousava perambular pelo centro nas horas pertencentes aos noturnos, logo se retirava, instintivamente. É que os noturnos olhavam, apenas olhavam para ele.

Laura encontra nestes pensamentos de Gabriel que nunca havia levado a sério, uma lógica um tanto mórbida. Não sabe se é por estar impressionada com os passos há pouco, ou coisa parecida, mas sente que todas as pessoas a seguem, incansavelmente, com o olhar.

Vinte e três horas e trinta e cinco minutos. Hoje não era um dos melhores dias de Laura. Acabara com um relacionamento de, contando namoro e noivado, sete anos (ela conhecera Gabriel logo no mês seguinte ao que chegara em são paulo, com os pais). Coisa à toa que foi crescendo, crescendo, até que explodiu, causando um estrago irrecuperável. Há dois dias, Gabriel e Laura combinaram de assistirem a um filme de Rainer Werner Fassbinder, tão elogiado pela crítica e pelo público (os fanáticos apenas). Laura nem mesmo conhecia esse diretor. Praguejava sei lá quem é esse tal de R. W. Faisbinde, Fasstindy, ou seja lá como for, só aceitei o convite para não contrariar o Gabriel, que é fanático por cinema, especialmente por esse tal de R. W. Seiláoquê. Agora me vejo aqui, sozinha, indo assistir a um filme que deve ser um saco. Só eu mesmo!

Laura não era uma pessoa de muita cultura. Nem ao menos razoável. Na verdade, Laura nunca ligara para isso. Formou-se no colégio com muito sacrifício e não mais quis saber dos estudos. Já Gabriel, era o que se podia chamar de intelectual. Não um gênio de assuntos diversos, mas arte ele conhecia muito bem.

Gabriel, ao convidar Laura para assistir o filme de RWF, contou-lhe todos os detalhes que conhecia do filme. O roteiro é adaptado da peça teatral de franz xaver kroetz. Foi filmado na região de straubing. Estreou dia 30 de dezembro de 1972 em munique e foi o maior sucesso. A comissão alemã de apreciação cinematográfica qualificou a obra como sendo de alto valor artístico. O autor do texto original, kroetz, definiu o filme como pornografia com um toque de crítica social, e tentou suspender sua exibição nos cinemas. Fassbinder respondeu às críticas de kroetz em uma carta publicada num jornal de munique, dizendo que tudo que está no filme também está na peça. Talvez isso te faça sentir vergonha. Esse diretor é o máximo!

Como chama o filme perguntou Laura, deixando escapar seu total desinteresse pelo assunto.

Isso é surpresa. Posso te adiantar o nome no original alemão: wildwechsel.

Para Laura, este nome nada tinha a dizer.

Laura e Gabriel haviam rompido e desta vez não haveria volta, como acontecera nas outras cinco vezes em que se separaram. Isto deixava Laura muito insegura, principalmente por ela ser uma mulher de trinta e dois anos, enquanto Gabriel é um rapazote de vinte e três, alto e moreno, com bastos cabelos encaracolados e músculos bem torneados. Laura amava Gabriel. Indo ao cinema ela esperava revê-lo e, mais calmos, acertarem as diferenças.

Laura continuava caminhando e divagando. Sua memória parecia ter vontade própria. Da praça do correio, desceu até o vale do anhangabaú — Laura não conhecia muito bem o centro da cidade, mas queria evitar a todo custo o largo do paissandú. Ela tinha medo dos indigentes que dele faziam morada, à noite. Chegando ao anhangabaú, Laura ainda foi capaz de reparar como ficara bonita a obra da prefeitura de são paulo.

Beirando as portas dos bares miseráveis, prostitutas ofereciam sexo a preços módicos. Encostadas na parede estavam regina (branca, 49, 5 filhos) e carla (negra, 17, 2 filhos). Respectivamente a mais velha e a mais nova prostituta do ponto. Que tipo de vida levarão estas pobres mulheres pensou Laura, ainda mais com essa onda de assassinatos seriais — este termo ela ouvira de Gabriel, que se interessava muito por notícias de assassinos e assassinatos, principalmente os mais brutais — esses assassinatos seriais que vêm acontecendo na cidade, tendo apenas prostitutas como vítimas.

Ei gracinha, que tal um programa? vou te fazer gozar de um jeito que nunca nenhum homem fez disse uma prostituta que tinha os cabelos tingidos de vermelho, deixando escapar o tom marrom original nas proximidades do couro cabeludo, vastos seios redondos e pingentes sustentados por um soutien-gorge em rendas pretas e uma micro saia que não se preocupava em esconder coisa alguma entre o umbigo e a virilha. Laura, assustada, não teve sequer coragem de olhar para o lado. Se olhasse, veria que a prostituta mexia freneticamente com a língua entre uma frase e outra. Vem cá tesão, deixa eu lamber essa grutinha... Laura correu deixando os bares para trás. Subiu apressadamente a votorantim, passou pelos fundos do teatro municipal e desceu a conselheiro crispiniano, ganhando a entrada do cinema.

Como o Gabriel me faz falta lamentou Laura, recuperando o fôlego enquanto comprava o ingresso na bilheteria. Será que ele virá? se vier, vou me desculpar por tudo que disse, vou beijar-lhe o rosto, a boca, as mãos, os pés...

Encruzilhada de bestas humanas. Não era exatamente o título de um filme que Laura viria assistir por livre escolha.

Vinte e três horas e quarenta e cinco minutos. Uma escada curva situada na ala direita do hall levava à sala de espera do cine um. As portas da sala de projeção ainda estavam fechadas. Podia-se contar nos dedos das mãos os espectadores na sala de espera.

O cinema não era o que se podia chamar de uma sala de espetáculos decente. Em sua programação normal, eram exibidos filmes pornográficos de quinta categoria. Na verdade, os cuidados com a decoração pareciam esquecidos há tempos, mas para o público que costumava freqüentar aquele cinema, estes detalhes realmente não importavam.

A sala de espera era escura, com fracas luzes amarelas nas extremidades superiores do teto exageradamente alto. Arquitetura barroca comentou Laura olhando para cima, ao lado de um homem de barba, querendo puxar assunto, mas nada lhe foi respondido. No centro, um enorme lustre de cristal enfeitava o ambiente, que na inauguração do cinema, em janeiro de cinquenta e um, deve ter sido a sensação dos cinéfilos da cidade, mas atualmente permanece apagado. O chão era preto e as paredes revestidas por um tom verde-ágata que contribuía para o ambiente monótono que o lugar oferecia. Não havia janelas ou circuladores, e o raro ar puro tinha que ser disputado com a fumaça de cigarros e charutos baratos. Uma bonbonnière acomodada do lado esquerdo da escada e de frente aos sofás envelhecidos, oferecia refrigerante sem gelo e pipoca fria e murcha.

Gabriel não estava presente. Faltavam dez minutos para começar a sessão quando as portas da sala de projeção foram abertas e as pessoas começaram a entrar. Laura permanecia parada na porta, entre a sala de espera e a de projeção, na expectativa, na esperança de que Gabriel chegasse.

A sala de exibição não melhorava em nada a primeira impressão do cinema. Um carpete fino e gasto cor carmim cobria o chão e as paredes. O teto, também alto e mal-cuidado, era trabalhado em formas barrocas tradicionais, deixando aparente a necessidade de reforma e nova pintura. As poltronas, se é que podiam ser chamadas assim, ao serem ocupadas por alguém, recusavam-se em ficar imóveis e emitiam um barulho de molas enferrujadas que há décadas não saciavam sua sede de óleo.

O filme já ia começar. O velhinho da bilheteria, que aparentava estar no mesmo cargo desde a inauguração, fechou a porta, recolheu a urna com os pouco mais de uma dúzia de bilhetes e sacou de uma lanterna. Ele usava um uniforme verde com detalhes em dourado. Não era possível distinguir de onde provinha o cheiro de mofo que impregnava o ambiente: se do carpete carmim, se do uniforme do velhinho ou se do próprio velhinho. Laura perguntou-lhe se não era permitido entrar depois do início da sessão e ele respondeu que em exibições normais sim, não era necessário indicador para os filmes pornográficos, pois era arriscado iluminar a cara de alguém que estivesse se masturbando ou fodendo com alguma prostituta da vizinhança, afinal, o preço do ingresso era bem mais barato do que meia hora em qualquer hotelzinho foleiro das redondezas. O velho tinha cara de quem nessa vida havia putanhado muito mais do que trabalhado. Enfim, o velho explicou que numa exibição que não fosse de filmes pornográficos ele assumia o papel de indicador e a bilheteria era fechada. Disse também que não era contratado mais um funcionário porque eram raros os filmes exibidos que não fossem pornográficos. Haviam dias em que a sessão passava para uma pessoa apenas.

Antes que o velho lhe aplicasse uma cantada ou começasse a se lamentar da vida desgraçada que levava, Laura agradeceu a informação e entrou na sala de projeção, procurando um lugar que não cheirasse a porra e mofo.

Apagam-se as luzes. Laura ainda deu uma olhada para trás na esperança de avistar Gabriel. Nada. Será que ele teria ficado tão enfurecido com ela que não viria a um filme de seu diretor favorito? tristeza, insegurança, abandono... Laura é uma pessoa fraca e vulnerável. Se bem que eu fui impertinente com ele confessou Laura, no tribunal de sua consciência.

* * *

Tudo começara há três dias. Gabriel fora apresentar seus trabalhos numa grande editora. Havia conseguido uma entrevista com um dos editores graças a um favor que fizera a um amigo, primo do editor, e este, em consideração ao primo muito querido, prometeu atendê-lo. Laura insistiu para ir junto mas Gabriel não permitiu. Disse que se não desse certo, não suportaria ser rejeitado na presença dela. Laura não acreditou mas calou. Ciumenta, Laura sentia que esse sentimento ímpar estava destruindo seu relacionamento. Chegou a notar, diversas vezes, uma certa impaciência em Gabriel ao lhe perguntar sobre o motivo de um atraso qualquer.

A entrevista era às dezesseis horas. Gabriel apresentou-se na editora com uma pasta grossa contendo trabalhos dos últimos três anos, na verdade, dos únicos três anos que se metera a escrever, às quinze e vinte e cinco. Chegou na sala de espera às quinze e trinta. Não queria se atrasar. Foi atendido às dezessete e quarenta e cinco. Sua pasta nem foi aberta, mas o editor prometeu que a abriria, mais tarde. Não nos ligue, nós ligaremos para você disse o editor, que se esqueceu de anotar o telefone de Gabriel. Saiu, dezessete e cinqüenta e dois; chegou em casa, dez e trinta; Laura liga, dez e trinta e um. Laura: lágrimas, polícia e interpelações. Gabriel: vai pra puta que pariu, desliga. O telefone toca novamente mas Gabriel não quer se desculpar com Laura. Gabriel não quer ouvir Laura, quer apenas esquecer... esquecer a editora, esquecer que precisa ligar para o banco e inventar uma desculpa por não ter cumprido o expediente, esquecer que Laura existe, esquecer que ele próprio existe e, principalmente, esquecer esta madrugada.

Depois disso, Laura não conseguiu ver ou falar com Gabriel.

* * *

O filme era nauseante. Filha de pais pobres e mentalidade pequeno-burguesa conhece um jovem operário com o qual inicia relação. Um amigo o denuncia e o rapaz é acusado de sedução de menor e condenado à prisão. Libertado por boa conduta, eles retomam o relacionamento, desta vez às escondidas. Ela engravida e convence o rapaz a matar o pai dela, empecilho de seu amor...

O que Gabriel consegue ver num filme desses? depressivo, mórbido... Gabriel sempre me pareceu um pouco estranho nesse ponto. Apesar de escrever contos e poesias, Gabriel não possuía a sensibilidade de um artista. Tinha um sentimento de morbidez incrivelmente desenvolvido.

* * *

Onde será que anda essa menina pergunta Anna a seu marido Pedro, que assiste à última edição do telejornal.

Não se preocupe, ela está com o Gabriel.

Não fale besteira, homem! que tipo de pai é você que nem sabe o que se passa com sua única filha? não sabe que eles romperam novamente?

Outra vez? já estou me acostumando à isso. Aliás, já nem sei mais...

Cala a boca! dessa vez é pra valer! eles até se xingaram de nomes que eu não teria coragem de repetir.

E o que você quer que eu faça?

Ora, seu imprestável, parece que não está nem aí, como se sua filha fosse uma vagabunda qualquer! o mínimo que você devia fazer é tirar o rabo desse sofá e ir atrás dela, seu imbecil!

Quando é que você vai aprender a não me xingar? o dia que eu ficar com o saco cheio dessa sua boca imunda e lhe encher a cara de porrada? será que vou ter que chegar a esse ponto?

E você lá é homem para isso? vê se anda logo, seu bunda-mole!

Pedro sai.

* * *

Os pais de Laura suportavam-se há trinta e três anos. Pedro viera para o brasil na esperança de mudar de vida, pois não agüentava mais viver nas sombras do pai, em portugal, entregando carvão à domicílio. Seu pai era um homem triste e infeliz. Flagrou a esposa na cama com seu melhor amigo. Matou os dois a sangue frio e ficou preso dezessete anos. Pedro ainda era um bebê quando tudo aconteceu, e foi criado pela tia. Depois de solto, o pai de Pedro reclamou os cuidados da criança, já um adulto, e abriu uma pequena carvoaria.

Anna fugira de casa, em mergozzo, provincia di novara, na itália, depois de uma decepção amorosa. Namorava um rapaz filho de turcos havia dois anos. Anna engravidou e o namorado não quis saber de se casar com ela, muito menos assumir a paternidade. Os pais de Anna apoiaram a decisão da filha de ter a criança e cuidar dela sozinha, mas o rapaz, incentivado pelos pais dele, deu uma surra em Anna, provocando aborto. A partir deste acontecimento, Anna passou a desprezar os homens, usando seu corpo para atraí-los e desrespeitá-los moralmente. Foi a maneira que encontrou para aliviar seu trauma. Reprimida pelos pais, Anna largou tudo e veio para o brasil.

Conheceram-se quando Pedro, ao desembarcar de um navio de clandestinos, avistou Anna, parada defronte ao cais, malas em mãos, como se estivesse escolhendo um caminho menos ruim para seguir. Ela havia acabado de chegar em outro navio. Ele pediu a ela alguma informação para puxar assunto, ela sorriu meigamente pensando em arrancar algum dinheiro, ele convidou-a para almoçar, ela aceitou, e foram comer um sanduíche de mortadela. Passearam durante o resto do dia com suas malas, contaram suas vidas (com as devidas mentiras) e, ao anoitecer, já na praia, dormiram sob uma canoa de pescador. Pedro procurou Anna sexualmente, mas esta negou-lhe o corpo. Depois de alguns dias, fazendo uma refeição por dia e dormindo onde podiam, Anna, dominada por um sentimento de pena pelo português, aliado às suas necessidades sexuais, entregou-se aos caprichos de Pedro, que aliás, não era muito criativo. Na falta de outro vai esse mesmo pensou Anna. Foderam a noite toda e no dia seguinte foram procurar um quarto para se acomodarem.

Anna não gostou da idéia de dividir o quarto com Pedro, mas ele não tinha dinheiro para pagar dois quartos. Anna quis arrumar um emprego para ver se conseguia se livrar daquele português sem graça, mas Pedro disse que não seria necessário, pois ele arrumaria um bom emprego e a sustentaria enquanto pudesse. Pedro queria fazer sexo todas as noites. Anna o evitava, aceitando apenas duas ou três vezes por semana, quando a vontade era muito forte e não arranjava outro para trepar enquanto Pedro estava fora, trabalhando.

Passado dois meses, Anna descobriu que estava grávida. Pedro, carente de amores e achando que não arrumaria nada melhor, resolveu casar e assumir a paternidade. A princípio, Anna não queria a união. Já era difícil se arranjar sozinha, ainda mais com um homem que não valia nem uma gozada, mas depois, meio que acomodada com a situação de não ter que trabalhar, aceitou o pedido. Ela não sabia que Pedro era estéril. Pedro não sabia que era estéril... ainda.

* * *

A mulher da bonbonnière avança subitamente pelas cortinas que separam a sala de espera da sala de projeção, deixando que uma pequena claridade chamasse a atenção dos espectadores.

Seu Afonso, seu Afonso... Afonso era o nome do velhinho porteiro-indicador. Um facho de luz encontra o rosto da mulher. Seu Afonso se aproxima.

Tem um moço lá fora querendo entrar de qualquer jeito. Ele está muito nervoso e parece violento. Insiste que precisa ver a cena do crime, e como o gerente não está, resolvi... o diálogo e a mulher desaparecem pelas cortinas juntamente com seu Afonso, que abandona seu posto de indicador sob o olhar curioso da reduzida platéia.

Alguns minutos depois, nova claridade invade a sala de exibição e, sem que a fita sofresse interrupção, entra seu Afonso conduzindo um rapaz com o facho da lanterna, procurando acomodá-lo num lugar qualquer.

Embora o filme fosse extremamente escuro, Laura, ao olhar para trás, poderia jurar que o tal rapaz era Gabriel.

Faltavam quinze minutos para que se completassem os oitenta e oito totais do filme. Laura estava ansiosa. Não prestava mais atenção ao que acontecia na tela, seus pensamentos estavam voltados para a possibilidade daquele rapaz ser Gabriel.

Ende. As luzes são acesas. Laura, ao olhar para trás, de relance, reconhece Gabriel, que parece trazer uma mancha vermelha na camisa, na altura do abdômen.

O tempo gasto pelos membros de Laura em interpretar as ordens de se moverem recebidas do cerebelo, associado à forte emoção que sentia, fora o bastante para que ela, ao parar na calçada em frente ao cinema, olhando para cima e para baixo da conselheiro crispiniano, percebesse que perdera Gabriel de vista.

* * *

Onde está papai pergunta Laura, entrando em casa quando já passavam das duas.

Foi lhe procurar. Onde você estava filhinha, que não avisa...

Não enche o saco!

Anna foi dormir. Laura está na sala, recordando a noite enquanto espera o pai. O que teria feito Gabriel se atrasar? ele sai da faculdade, lá no centro mesmo, todas as noites às onze horas. Que Laura soubesse, ele não era de beber. Que mancha seria aquela em sua camisa? e aquela insanidade que trazia nos olhos? Laura dorme.

Nota a chegada do pai. Quatro e trinta e quatro. Hálito de aguardente.

Onde o senhor estava papai?

Pedro, com a dicção prejudicada pelo efeito do álcool, estive te procurando, sua vaca. Com quem é que você estava desta vez, hein?

Pedro tenta esbofetear Laura e, ao errar, perde o centro de equilíbrio de seu corpo e cai, adormecendo ali mesmo. Laura, com muito esforço, consegue levantar o pai e colocá-lo no sofá.

* * *

Laura não gostava da mãe mas amava Pedro. Trazia uma mágoa profunda pela mãe e era incapaz de perdoá-la por não ser filha legítima de Pedro. Imaginava que seu verdadeiro pai era um desses putanheiros que viviam perambulando pela cidade, enquanto Pedro era um homem honesto e digno para qualquer mulher, menos para Anna. Laura tinha um forte sentimento de compaixão pelo pai de criação.

Anna, ao contrário disso, não suportava Pedro e amava Laura. Ela sentia a filha como o fruto de um amor verdadeiro, um marinheiro francês que conhecera certa vez quando este desembarcara no brasil. Anna entregou-se loucamente a este marinheiro, que prometera voltar assim que acabasse o serviço militar. Au revoir, chéri! mentira. Resolveu então casar-se com Pedro mesmo, que na ocasião, sustentava seus caprichos.

Pedro amava Anna mas não tinha o mesmo sentimento por Laura. Ele acreditava que Laura estragara seu casamento. A princípio, Pedro amou Laura, quando pensou ser filha dele. Passados três anos do nascimento da filha, soube que era estéril. Soube que sempre fora estéril. Obcecado e apaixonado por uma mulher adúltera (a exemplo da própria mãe), precisava culpar alguém. Pedro nunca quisera ter filhos. Se Laura não houvesse nascido, como era sua vontade, nada disso teria acontecido.

* * *

O médico legista passou o dedo de leve sobre a carótida arrepiada da vítima. A artéria carótida externa, explicou o legista aos investigadores que acompanhavam seu trabalho, origina-se na carótida interna e distribui-se pelo pescoço, face e crânio. É sempre fácil de ser atingida. Com um corte de meio centímetro de profundidade no pescoço, a vítima perde a consciência em poucos segundos. Porém, se o corte for estancado em um minuto e o socorro vier em até quinze, não é fatal. Pelas características das outras mortes, supõem-se que o assassino errou o golpe. As outras vítimas foram golpeadas na subclávia, numa artéria bem mais delicada, situada sob a clavícula e alguns músculos, e por isso, exige da lâmina uma empunhadura de maneabilidade reduzida, não devendo ser procurada em lutas corporais, pois o objetivo pode não ser atingido. O corte deve ser de quatro centímetros e quando a subclávia é atingida, o sangue irrompe num jato inestancável, forte como uma mangueira de bombeiro, a consciência é perdida em três segundos e a morte sobrevém no quarto. Um golpe que deve ser desferido com calma. Neste caso, a vítima deve ter reagido.

Um grupo do exército também acompanhava o caso. Eram especialistas de uma divisão denominada getta (grupo de estudos de técnicas e táticas de armas), e observaram que todos os crimes até agora foram cometidos com uma faca muito rara, a nasca, de origem até hoje desconhecida. Chegaram a esta conclusão por uma característica muito singular da faca, quatro reentrâncias na lâmina, que causavam um dilaceramento único.

* * *

Laura gostava de ler as notícias antes de ir trabalhar pela manhã, mas não todo o jornal, que achava chato e sem graça, somente as estórias em quadrinhos, a parte cultural, onde vinha a programação de cinema, teatro, shows, lançamento de livros, etc, e a parte policial. Normalmente, a parte policial é a que ela lia mais atentamente e a que mais gostava, ou melhor, que aprendera a gostar com Gabriel. Laura lia para saber dos novos crimes acontecidos na cidade, sempre durante o café, que era um prato de aveia cozida, um copo de suco de laranja e um pedaço de queijo minas. Uma manchete chamou a atenção de Laura.

Possível Vítima Do Assassino De Prostitutas Escapa Com Vida


Chega a treze o número de vítimas do maníaco assassino que vem aterrorizando a cidade nos últimos quinze meses. O crime se deu num hotel da boca do lixo. Felizmente o ataque não foi fatal e a vítima foi socorrida por uma colega de trabalho que se encontrava no quarto ao lado. A polícia pede que a identidade da vítima seja mantida em sigilo para que não haja queima de arquivo, e espera conseguir um importante depoimento para as investigações. O estado da vítima ainda é delicado.


Com exceção de Marineide Alves de Souza, 33, oitava vítima, todas as outras eram prostitutas. Acredita-se que Marineide tenha sido um engano do anormal.

Laura sai.

* * *

Laura trabalha no hospital das clínicas, como auxiliar de enfermagem. Não tem grandes pretensões na vida, a não ser casar. Se não fosse com Gabriel, com quem seria?

Durante o período da manhã, Laura não consegue pensar em outra coisa a não ser Gabriel. Sua atitude no cinema fora muito estranha.

O telefone toca. Era para Laura.

Laínha…, Gabriel chamava Laura por este apelido carinhoso, sou eu, Gabi…

Oi. Embora estivesse contente e aliviada por Gabriel ter ligado, não queria demonstrar muito entusiasmo. O que você quer?

Eu estou precisando conversar com alguém... Talvez pudéssemos nos ver, mais tarde.

Depois de tudo que você me disse?

Por favor, Laínha... eu preciso muito conversar.

O que aconteceu?

Sou eu. Tenho me sentido muito estranho ultimamente, e acabo descarregando em você, que não tem nada com isso.

Que gracinha, ele está arrependido. Tudo bem, me apanhe aqui no hospital às sete. Desliga.

Laura tenta imaginar o que teria acontecido com Gabriel. A cena do cinema, a camisa manchada, o súbito telefonema de desculpas e reconciliação...

* * *

E então? Laura levando um copo de chope escuro à boca.

Bem, eu me arrependi do que lhe disse no telefone aquele dia.

Hum...

E eu queria me desculpar com você.

Sei... Laura estava cada vez mais ansiosa, com vontade de voar no pescoço de Gabriel e fazer sexo ali mesmo, em baixo da mesa, abrir-lhe o fecho éclair, descobrir seu membro rijo e acariciá-lo, beijá-lo, suas coxas e nádegas musculosas...

Puxa, você está tão brava comigo que não é capaz nem de conversar sem ficar emitindo apenas monossílabos?

Laura pensa pelo amor de deus, Gabi, não é nada disso... eu só estava fazendo onda, eu te perdôo sim, amor, mas fala, sejamos honestos Gabriel, você me procurou para desabafar um de seus grilos. Você não está mais nem aí comigo.

Não é nada disso Laínha. Naquele dia eu estava arrasado. Além do que, havia bebido a noite inteira, e você sabe que eu não sou de beber... imagine como eu fiquei!

Está bem, o que aconteceu? Laura, pela primeira vez em sete anos de relacionamento com Gabriel, sentia que dominava a situação.

Não sei bem, mas ando fazendo coisas que não queria, parece que algo me induz, sei lá... uma loucura!

Como no cinema?

Gabriel empalidece, arregala os olhos, o coração gela. Que cinema?

Laura não queria que ele soubesse que ela fora assistir o filme de RWF sem ele. – Aquele filme do diretor... qual é mesmo o nome daquele diretor que você adora?

Gabriel nervoso, Fassbinder.

Isso. Uma amiga minha do hospital, a Bete, foi e disse que te viu entrando quase no final, depois de um escândalo na portaria... não era você?

Gabriel confessa.

* * *

Isso é loucura, Gabi. De onde você tirou essa idéia?

Só pode ser. Às vezes, chego a perder a consciência por horas, e quando acordo, não me lembro de nada. Já acordei em lugares que não me lembro de ter caminhado até eles... e as vítimas aparecendo... eu devo estar louco!

Só louco mesmo para inventar uma estória dessas... e ainda por cima quer se entregar para a polícia. Você realmente acha que eles vão acreditar que você é o assassino de prostitutas?

Precisam acreditar, para que não haja mais mortes.

Gabriel sofria de pequenos ataques de amnésia. Disso Laura sabia e Gabriel também. Ela só não entendia por que essa obstinação repentina pela autoria dos crimes. Laura sabia, mais do que ninguém, que não podia ser ele, apesar do seu lado mortuoso.

Vamos para um motel?

Francamente Laura, eu aqui preocupado com o rumo que vou dar à minha vida e você querendo meter?

Ora Gabi, uma boa trepada vai aliviar a sua tensão, afinal, já faz tanto tempo...

Meio contrariado, Gabriel aceitou o convite. Subiram no carro dele e pegaram a régis bittencourt. Andaram bem uns dezesseis quilômetros. Durante a viagem, Laura, sem conseguir conter-se, despiu o membro de Gabriel, tal qual imaginara na lanchonete, e passou a beijá-lo, voluptuosamente. A certa altura, Laura, não conseguindo mais controlar seus instintos, obrigou Gabriel a parar o carro, pois queria foder sob as estrelas, a céu aberto, na grama do acostamento.

Pararam. Forraram o chão com as próprias roupas, evitando assim que a grama irritasse os corpos nus. Beijaram-se de corpo inteiro e, em uníssono, executaram a sinfonia do sexo e do amor.

Gozos. Cigarros. Laura levanta e caminha até o carro, revira a bolsa. Gabriel descansa, de bruços. Laura senta sobre o dorso de Gabriel e passa a massageá-lo com a mão esquerda.

Sabe Laínha, na verdade eu não acho que eu seja o assassino, mas...

Eu sei, Gabi... mas não vamos falar nisso agora, relaxa...

Hum... Como é bom!

Vou aliviar todas as suas tensões. Juro que não vai doer, Gabi. Saiba que eu te amo, tá?

Eu também te a...

Antes que Gabriel pudesse terminar a frase, Laura, num movimento rápido e hábil, ajeita sua nasca que mantinha na mão direita na empunhadura necessária, e busca a subclávia de Gabriel. Ele sente uma pequena ardência quando a lâmina sai, o que lhe arranca um leve suspiro.

* * *

Laura adora ler jornal durante seu desjejum, antes de sair para o trabalho.
Polícia Encontra Provável Vítima Do Maníaco.

Foi encontrado morto na altura do quilômetro dezesseis e meio da rodovia Régis Bittencourt, um rapaz alto, moreno de cabelos encaracolados.pelas características do crime, a polícia acredita que o rapaz fora vítima do assassino de prostitutas e que estivesse de alguma maneira ligado à prostituição. Por não portar documentos, a vítima ainda não foi identificada. A polícia, preocupada com o curto intervalo entre dois assassinatos, reforçou as investigações.

A vítima que sobrevivera ao ataque da semana passada e que estava internada na uti do hospital das clínicas, veio a falecer nesta madrugada. Elissandra da silva marques, 22, não chegou a prestar depoimento. Segundo a polícia, há indícios de envenenamento. Aguarda-se o laudo oficial.
Que merda, não sabem dizer mais nada nos jornais a não ser mortes. Laura sai para o trabalho.